Definição
Construção social responsável por condicionar as relações humanas, as expectativas da sociedade e fundamentar um conjunto de novas técnicas de governança, mediada por imagens (seguidas ou não de um roteiro) definidas pelos detentores do poder econômico e de seus interesses mercadológicos.
Aspectos distintivos
O espetáculo pode ser, metaforicamente, apontado como a divina trindade da pós-modernidade: ao mesmo tempo que é a sociedade, é também uma parte dela e sua ferramenta de união. Em que pese a sensação de invasão proporcionada pelo espetáculo, já se admite que é uma espécie de invasão civilizatória, inexorável, que seduz as pessoas a com ela colaborar, mesmo ignorando para que serve esta conquista e de que forma ela prospera.
Utilizando outra terminologia, mas se referindo ao mesmo fenômeno, Türcke afirma que a 'sensação' nas sociedades contemporâneas se conforma como um vício, como uma forma de se desviar da sobriedade; sendo assim, vivemos em tempos de uma 'sociedade excitada'. Esta desmesura da excitação, paradoxalmente, resulta do viés de dominação de nossos processos históricos-sociais que, como sequela, deu origem a esta sociedade distraída que busca incessantemente se afastar da serenidade.
A sociedade contemporânea está umbilicalmente ligada ao espetáculo e o sistema penal, como fruto desta sociedade, não possui relação diferente para com o espetáculo. Debord escreveu que todo e qualquer crime ou delito são fatos sociais, porém, nada que seja intentado pelo homem será considerado mais violento e ultrajante do que a tentativa reiterada de promover mudanças consideráveis nesta sociedade que, impregnada pelo espetáculo, já não aceita mais nenhuma forma de crítica.
A democracia 'fabricada e vendida' pela sociedade do espetáculo orienta, no que nos interessa neste artigo, o Direito Penal a criminalizar condutas que afrontem os interesses econômicos de quem detém o poder e, principalmente, a perseguição daqueles que não são economicamente viáveis. Segue atuando veladamente no curso do Processo Penal, onde a atividade das partes (defesa e acusação) é substituída por discursos repetitivos e populistas dos magistrados. E, quando chegamos na Execução Penal, podemos ver com mais nitidez o quanto de cruel e desumano pode ser o espetáculo que nossa sociedade aprecia.
Os mecanismos high-tech, como verdadeiras drogas, são cada vez mais e mais responsáveis pela disseminação do espetáculo e, paralelamente, servem como instrumentos de controle e persuasão.
Análise
A dominação exercida pelo espetáculo, como qualquer modelo de dominação absolutista, é opressora. O governo do espetáculo (que não quer dizer o governo da nação), por ser dono dos meios de produção e de percepção, é também o dono dos meios de falseamento dessa produção, gerando, assim, percepções falsas, desde que do interesse deste governo. Ele detém as lembranças e o futuro. De forma inconteste, é o soberano onipresente e onisciente perpetrando julgamentos lacônicos.
Através de seu mais poderoso instrumento, a mídia, os donos do espetáculo inserem cotidiana e subliminarmente inferências que vão se acumulando e formando 'certezas', 'opiniões' e 'necessidades' de acordo com o interesse de quem as dita. O adágio 'imprensa livre e independente' é mero verbete de garantia constitucional. Todos estão a serviço de alguém, de alguém que os paga, de alguém que não quer ver seus interesses econômicos contrariados, de alguém que já determinou os caminhos a serem traçados. Aqui devemos atentar para Debord que escreveu que mesmo quando os 'donos da sociedade' reclamam dos maus serviços prestados pelos 'empregados midiáticos', as pretensas discordâncias dissimulam o contrário, ou seja, demonstram uma espetacular confluência que sempre é buscada com extrema obstinação.
As diretrizes das políticas públicas que se direcionam ao Sistema Penal comumente são explicadas e fazem jus aos 'interesses do corpo social'. Neste sentido, lembro do questionamento de Nilo Batista: "[...] que significarão 'interesses do corpo social' numa sociedade dividida em classes, na qual os interesses de uma classe são estrutural e logicamente antagônicos aos de outra?". Pretensiosamente, posso entender que a resposta é que quando se lê 'interesses do corpo social' deveria se ler 'interesse do espetáculo'.
O Direito Penal não é imune ao espetáculo. Trabalhamos com a ideia da existência de duas etapas na criminalização: a primária, através do processo legislativo, responsável pela criação e alteração das leis penais; e a secundária, que é a própria ação punitiva sobre quem fere um dos dispositivos penais previamente estabelecidos. Porém, não podemos olvidar que a influência do espetáculo aparece antes mesmo da criminalização primária. Exemplos não faltam neste sentido. Em resposta à onda de sequestros de personalidades no final da década de 1980, em julho de 1990 foi promulgada a Lei nº 8.072 – Lei de Crimes Hediondos; o assassinato da atriz Daniela Perez, ocorrido em 28/12/1992, mobilizou a opinião pública e em 1994 o homicídio qualificado foi incluído no rol de crimes hediondos através da Lei nº 8.930.
Mas não é somente desta forma que o espetáculo age influenciando a sociedade e o sistema penal. Peças publicitárias, filmes, novelas, seriados, que tenham como argumento a criminalidade, o crime, a polícia, a violência sempre apresentam os 'indesejáveis' como os fregueses do sistema. E os 'indesejáveis' são representados pelos jovens pobres, suburbanos, preferencialmente negros e iletrados. Está criada a figura do criminoso brasileiro, mesmo antes de um crime ter acontecido.
O Processo Penal, quando se volta para o espetáculo, já não possui mais lugar para a garantia dos direitos fundamentais. É preciso punir de qualquer modo, punir com rigor maior. A disposição do artigo 1º da nossa Carta Magna submerge diante da excitação punitiva gerada pela expectativa nutrida pelo espetáculo. Não subsiste no processo regido pelo espetáculo o diálogo e o trabalho da defesa e da acusação, mas sim, o 'clamor das ruas', a 'voz do povo' que orientam a decisão do magistrado entregue às espetaculares veleidades. Enfim, no Processo Penal do espetáculo os fins justificam os meios e, contrariando o que se busca com o Processo Penal democrático, que é reconstruir (na medida do possível) o fato que foi atribuído ao vivente, aqui, no espetáculo, erigir-se-á o enredo sobre o fato.
O sujeito que já foi selecionado como freguês do sistema e compelido ao cometimento de algum delito, que foi preso e processado atendendo às regras da espetacularização, encontrará, ainda, na Execução Penal, a face mais visível do império do espetáculo sobre a opinião da sociedade. Quem já não ouviu o famoso adágio 'bandido bom é bandido morto'? Quem nunca ouviu que 'é besteira sustentar vagabundos na prisão'? Todos ouvimos. Ouvimos, inclusive, do candidato à presidência da república que acabou eleito no pleito de 2018. A mensagem subliminar foi introjetada e assimilada. O sistema de justiça criminal está formatado para fazer funcionar, à perfeição, o projeto do espetáculo.
E se o sujeito, por uma sorte inusitada, não for condenado? Condenado estará. A forma espetaculosa como se portam os membros do Ministério Público no Brasil, que forjam mirabolantes entrevistas para anunciar denúncias eivadas de power points e convicções baseadas em simpatias ou antipatias pessoais, terão cumprido o protocolo do espetáculo e de nada importará o resultado.
Este quadro somente poderá ser mudado quando pudermos ressignificar o Sistema Penal, recuperando e fortalecendo os mecanismos garantidores dos direitos fundamentais, modificando a 'pré-cognição' e a precognição de todos os níveis do sistema (polícia, ministério público e judiciário) e permitindo que estes desempenhem suas funções sem a opressão do espetáculo e a tentação popularesca.
Referências bibliográficas
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12. ed. rev. e atual. 3. reimp. Rio de Janeiro: Revan, 2017.
CASARA, Rubens R.R. Processo Penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
DEBORD, Gui. A sociedade do espetáculo (La Société du spetacle). trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Unicamp Editora, 2010.
Referências artísticas
A Sociedade do Espetáculo (Guy Debord, 1973)
Documentário
É um documentário que ressalta o aspecto de espetacularização dos feitos, em qualquer sociedade, seja ela neoliberal ou socialista. O espetáculo se apresenta, simultaneamente, como representação da própria sociedade. Enquanto parte da sociedade, ela é o foco de toda a visão e de toda consciência. Mas por ser algo separado, ela é, na verdade, o domínio da ilusão e da falsa consciência: a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação.
Jogos Vorazes (Gary Ross, 2012)
Filme
Na região antigamente conhecida como América do Norte, a Capital de Panem controla 12 distritos e os força a escolher um garoto e uma garota, conhecidos como tributos, para competir em um evento anual televisionado. Todos os cidadãos assistem aos temidos jogos, no qual os jovens lutam até a morte, de modo que apenas um saia vitorioso.
Carlos A F de Abreu
Lattes | ORCID
ABREU, Carlos A F de. Sociedade espetacular. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. 2.ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2021. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/sociedade-espetacular/87. ISBN 978-65-87298-10-8.