Pornografia de vingança

Pornografia de vingança

Definição

Vazamento ou compartilhamento não consentido de imagens íntimas (sexualmente explícitas, provocativas ou sugestivas) de uma pessoa, com o objetivo de humilhá-la, assediá-la ou puni-la, geralmente após a ruptura da relação afetiva.

Aspectos distintivos

Os vazamentos e compartilhamentos não consentidos de imagens íntimas são majoritariamente perpetrados por homens e as vítimas são geralmente mulheres jovens, com quem eles tiveram algum tipo de relacionamento afetivo. As vítimas frequentemente sabem da gravação (vídeo ou foto) e a haviam autorizado/fornecido. O fato de as vítimas serem jovens e terem ciência da gravação é resultado de uma questão geracional (novas formas de identificação e comunicação, novos entendimentos da intimidade e da sexualidade), e não deve ser interpretado como ingenuidade ou imprudência juvenil (argumento tutelar da sociedade com a população jovem).

Os motivos da pornografia de vingança são vários. Embora presente na própria expressão que define a violência, o motivo vingança é predominante, mas não exclusivo. Muitos compartilhamentos não têm motivação específica, o que revela a prática desarrazoada e inconsequente de se compartilhar imagens íntimas de pessoas próximas, e é bastante comum a exibição da imagem ou do vídeo sem envio do arquivo, que são os casos em que uma pessoa exibe em seu próprio telefone celular imagens ou vídeos íntimos de determinada pessoa com quem aquela se relacionou, sem transmiti-los. Além disso, o vazamento/compartilhamento pode estar ligado a outros crimes, como ameaça, extorsão e invasão do aparelho.

As consequências dessa violência são graves: ansiedade, isolamento do contato social, depressão, transtorno de estresse pós-traumático, automutilação e pensamentos suicidas, assédios em lugares públicos, abandono de escola/curso/faculdade, mudança de residência, agressões, perda do emprego e dificuldade para conseguir um novo. Casos mais raros sugerem que algumas vítimas não se importaram com o vazamento dos arquivos ou que elas aproveitaram o fato para uma ação positiva, como a fundação de ONG de assistência a vítimas ou justificativa para um trabalho acadêmico, por exemplo.

Característica da pornografia de vingança é a sua subnotificação, que ocorre por vários motivos. Primeiro, existem as “peneiras da vergonha”: aqueles que têm suas imagens íntimas vazadas têm de superar a vergonha de contar sobre o vazamento a pessoas de seu círculo íntimo, como familiares e amigos; se quiserem ajuda profissional, têm de recorrer a terapeutas e advogados, a quem terão de expor voluntariamente sua intimidade; e, além disso, se pretenderem a resolução jurídica do conflito, têm de confiar o ocorrido a servidores do sistema policial e judicial – os quais, majoritariamente, não têm preparo para esse tipo de atendimento. Esse processo em que a vítima acaba sendo exposta em múltiplas etapas pode produzir sua revitimização. Segundo, é possível que as vítimas não reportem o vazamento porque elas podem acreditar que assumiram o risco do compartilhamento ou que elas são as culpadas por isso, como nos casos em que a própria pessoa envia o nude que é posteriormente vazado. Por fim, no caso em que homens são vítimas, o baixo índice de denúncias pode refletir a realidade de que eles não percebem a exposição de suas imagens íntimas como uma violência, nem a sociedade os condena moralmente por isso.

Análise

É relevante a identificação de que o vazamento/compartilhamento deriva majoritariamente de relacionamentos afetivos e que ele é geralmente perpetrado por homens contra mulheres. Isso deixa claro que a pornografia de vingança é uma violência tradicional (violência contra a intimidade sexual), com motivação tradicional (violência doméstica e, majoritariamente, de gênero), porém executada por um novo meio tecnológico acessível que potencializa seus efeitos.

A relação de afeto como antecedente comum ao vazamento/compartilhamento oportuniza discussões sobre os códigos e as arquiteturas das relações amorosas contemporâneas, ainda pautados pelo credo do amor romântico e reforçados pela cultura machista. A frustração causada pela não realização da compatibilidade perfeita pressuposta pelo amor romântico pode ser causa de episódios de violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, promovendo objetificação, subordinação e controle do outro (de um lado), e culpa, submissão e relativo isolamento do mundo exterior (de outro). Além disso, a preexistência de relacionamentos afetivos entre perpetrador e vítima indica que, na maior parte dos casos, houve consentimento para a exposição das imagens íntimas a um destinatário original conhecido, o que é próprio da prática do sexting (transmissão de mensagens ou imagens sexualmente explícitas, provocativas ou sugestivas), mas que os arquivos foram posteriormente compartilhados sem novo consentimento.

Observando-se o gênero de perpetradores e vítimas, fica evidente como a pornografia de vingança reforça as perspectivas culturais misóginas: considerando que são os homens que majoritariamente vazam/compartilham os arquivos, é possível perceber que eles são responsáveis pelo enquadramento (tanto no sentido técnico da gravação, quanto no sentido metafórico da produção de discurso) do corpo feminino e de sua performance sexual, criando um ponto de vista específico sobre a mulher e sua sexualidade.

Referências bibliográficas

FRANÇA, Leandro Ayres; QUEVEDO, Jéssica Veleda; FONTES, Jean de Andrade; SEGATTO, Anderson José da Silva; ABREU, Carlos Adalberto Ferreira de; SANTOS, Diego da Rosa dos; VIEIRA, Luana Ramos. "Projeto Vazou: pesquisa sobre o vazamento não consentido de imagens íntimas no Brasil", Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 169, ano 28. p. 231-270. São Paulo: RT, jul. 2020. ISSN 1415-5400.
FRANÇA, Leandro Ayres et al. "A criminalização do revenge porn: análise do art. 218-C (Código Penal)". Boletim IBCCRIM, ano 26, n. 315, fev. 2019. p. 11-13. ISSN 1676-3661.
NERIS, Natália; RUIZ, Juliana Pacetta; VALENTE, Mariana Giorgetti. “Análise comparada de estratégias de enfrentamento a ‘revenge porn’ pelo mundo”, Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 7, n. 3, 2017. p. 333-347.
SYDOW, Spencer Toth; CASTRO, Ana Lara Camargo de. Exposição pornográfica não consentida: da pornografia de vingança ao lucro. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.
VALENTE, Mariana Giorgetti; NERIS, Natália; RUIZ, Juliana Pacetta; BULGARELLI, Lucas. O corpo é o código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil. São Paulo: InternetLab, 2016.

Referências artísticas

Blush (Charlotte Josephine, 2017)
Peça teatral
Cinco personagens compartilham suas histórias sobre pornografia de vingança.

Ferrugem (Aly Muritiba, 2018)
Filme
Durante uma excursão da escola, a jovem Tati perde seu celular. Nos dias seguintes, descobre que um vídeo íntimo seu, gravado com ex, foi compartilhado no grupo de WhatsApp dos colegas e em sites pornôs.

Sex Education, T1E5 (Laurie Nunn, 2019)
Série
Uma aluna tem uma foto íntima compartilhada com a ameaça de revelação da sua identidade. Para evitar sua exposição, durante uma reunião da escola, várias alunas "reivindicam" a imagem, o que promoveu a hashtag #itsmyvagina nas redes sociais.

Leandro Ayres França
Lattes | ORCID


Nota de atualização do autor (3ª edição):
A "pornografia de vingança" foi criminalizada no Brasil com a introdução do art. 218-C, no Código Penal. Na época, o GECC apresentou críticas que foram publicadas no Boletim IBCCRIM (n. 315) e depois reproduzidas com mais profundidade no artigo publicado na RBCCRIM (n. 169). Os dois textos encontram-se referenciados acima.


FRANÇA, Leandro Ayres. Pornografia de vingança. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2020. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/pornografia-de-vinganca/55. ISBN 978-85-92712-50-1.