Definição
Conjunto de diretrizes, medidas e ações, institucionais e não institucionais, organizado pela sociedade para o enfrentamento – em prima ratio não-penal, não-repressivo e não-estatal – do fenômeno criminal, bem como para impor obrigações e limites aos legisladores e instituições do sistema penal.
Aspectos distintivos
O caráter transdisciplinar da definição acima, de viés criminológico, atende aos diversos aspectos que orbitam ao redor do tema, de alta relevância. A construção desta ideia se fundamenta nos estudos de Mireille Delmas-Marty – que desenvolveu a teoria mais aceita acerca do tema política criminal – com seus modelos e movimentos alinhados aos sistemas civil law. No entanto, em busca da transdisciplinaridade, estudou-se o viés político apresentado por Nieves Sanz Mulas, o dogmático penal de Eugenio Raúl Zaffaroni e o sociológico de Luiz Eduardo Soares.
Política criminal (stricto sensu) é uma das espécies do gênero políticas públicas (lato sensu) e, neste contexto, o termo política é utilizado para identificar o conjunto de ações adotado para a consolidação do projeto de governança. A adoção deste ou daquele modelo de política criminal atende aos interesses e ao plano de governo de ocasião. Importa frisar que a política criminal aqui tratada não é a disciplina (atividade acadêmica), mas a acepção que remete à atividade de Estado.
No Brasil, de acordo com os modelos elaborados por Delmas-Marty, foi adotado o modelo de Estado Autoritário (E1) no qual se mantém a distinção entre infração (I) e desvio (D) e é o Estado o responsável por responder (Re) aos dois fatos sociais, restringindo ou desconsiderando a possibilidade de a resposta vir da própria sociedade (Rs). Não obstante, verifica-se vez ou outra inclinação pela adoção do modelo de Estado Totalitário no qual não se diferiria mais infração (I) de desvio (D) e seria afastada peremptoriamente a possibilidade de a sociedade participar na solução dos conflitos. Além destes, foram propostos os seguintes modelos: Sociedade Autogestora (S1), Estado-Sociedade Liberal (ES1), Estado-Sociedade Médico-Social (ES2), Sociedade Libertária (S2) e Anomia (A).
Estes modelos atendem, como dito anteriormente, ao definido pelo governo de ocasião, portanto é possível a migração e esta ocorre influenciada e impulsionada pelos movimentos de política criminal. Pode-se dividir os movimentos em duas grandes classes: maximizadores ou recrudescedores e minimizadores ou humanistas. Entre os primeiros estão o Movimento de Defesa Social (MDS), o Movimento de Lei e Ordem, a Política Criminal Atuarial e a Esquerda Punitiva; entre os segundos estão o Abolicionismo Penal, o Direito Penal Mínimo e o Garantismo Penal. No Brasil, o movimento preponderante é o de Lei e Ordem.
A elaboração dos Planos Nacional de Política Criminal e Penitenciária (PNPCP) no Brasil fica ao encargo do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) constituído por pessoas indicadas pelo Ministro da Justiça, com mandatos de 2 anos, podendo ser reconduzidos. Apesar deste Conselho e de suas funções terem sido previstos na Lei de Execução Penal em 1984, o primeiro plano foi elaborado somente em 1999.
Análise
A definição que inicia este verbete é uma proposta do que poderia e deveria ser a política criminal no Brasil, se exploradas todas as potencialidades dos setores que deveriam ser envolvidos nas resoluções de conflitos, de forma a maximizar a participação da sociedade e minimizar a do Estado. A complexidade das sociedades e de suas interações exige que, cada vez mais, ela própria participe na resposta a ser dada às condutas aleatoriamente definidas como crimes. Há que se diminuir, progressiva e tenazmente, a opressão exercida pelo paquidérmico Estado sobre seus cidadãos e, ao largo, aumentar a utilização de soluções negociadas e menos agressivas.
A solução proposta possibilitaria ainda que a política criminal adquirisse caráter mais estável e de maior segurança jurídica, pois afastaria o caráter político-ideológico da sua definição. Não podemos olvidar que, na forma atual, estas são adotadas para que os governantes eleitos coloquem em prática seus projetos. Deve- se, no entanto, ter em conta que toda política carrega, além do suporte ideológico, a necessidade de atender aos interesses determinados, em última instância, por paixões que buscam sua realização através do desempenho do poder em uma sociedade e os vínculos dos partidos políticos e das alianças que conduziram este ou aquele projeto ao poder, por vezes como forma de contrapor o projeto anterior de governança, pressionados pelos segmentos sociais em que estão seus apoiadores e ainda movidos por crenças individuais sobre o que é certo ou errado. Esta rede de comprometimentos, por certo, exercerá forte influência na condução da(s) política(s) do novo governo, inclusive na definição da política criminal.
Outro ponto a ser debatido é a utilização da política criminal em lugar de políticas sociais de amplo espectro. É costumeiro impor aos segmentos sociais mais vulneráveis doses cada vez maiores de opressão e direito penal em lugar de investimentos em educação, saneamento básico, saúde e trabalho digno. Exemplo desta distorção foi a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas comunidades do Rio de Janeiro. Não se buscou levar àquelas pessoas o Estado através de escolas, postos de saúde, serviços de acolhimento, oportunidades de emprego. Em substituição, disponibilizou-se postos policiais que aumentaram a ideia de discriminação e sectarização de toda uma comunidade.
Os Planos Nacional de Política Criminal e Penitenciária (PNPCP) apontam diretrizes para a atuação do Estado, nas três esferas de criminalização, porém não veem estas sequer observadas pelos legisladores, fiscais ou aplicadores das leis. Verifica-se total descompasso da teoria (PNPCPs) com a prática desenvolvida pelo sistema penal como um todo. Aqui, ousa-se fazer outra sugestão: a criação de lei que discipline a elaboração dos PNPCPs, sem no entanto se imiscuir no concernente à imponderabilidade da atuação política.
Referências bibliográficas
ABREU, Carlos A F de. O artigo 121 do Código Penal como caleidoscópio da política criminal brasileira. Dissertação (mestrado em Direito) – Universidade La Salle, Canoas, 2021. Orientação: Prof.ª Dra. Renata Almeida da Costa. 130f. Disponível em: http://hdl.handle.net/11690/2249. Acesso em: 14 dez. 2021.
DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal (Les grands systèmes de politique criminelle). Tradução: Denise Radanovic Vieira. Barueri/SP: Manole, 2004. ISBN 85-204-1876-7.
SANZ MULAS, Nieves. Manual de política criminal: com comentários sobre a realidade brasileira por Luiz Renê G. do Amaral e Marina Franco Lopes Filizzola. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2019. ISBN 978-85-9477-286-2.
SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo, 2019. ISBN 978-85-7559-696-8.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 3. ed. 5 reimp. Rio de Janeiro: Revan, 2017. ISBN 85-7106-358-3.
Referências artísticas
Notícias de uma guerra particular (Kátia Lund e João Moreira Salles, 1999)
Documentário
Documentário que conta a história da violência urbana na cidade do Rio de Janeiro e outras cidades do Brasil. Um cenário de policiais corruptos, traficantes e usuários em que todos estão submetidos à uma grande guerra diária. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lg0F8Wpi2HM.
Justiça (Maria Augusta Ramos, 2004)
Documentário
O documentário mostra o cotidiano dos funcionários do Poder Judiciário, mais precisamente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, bem como expõe as mazelas e a situação precária do sistema carcerário brasileiro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KqycXw3BSYE.
Sem pena (Eugênio Puppo, 2014)
Documentário
Documentário sobre o sistema jurídico e prisional brasileiro. A precária vida nas prisões do país e os medos, preconceitos e equívocos que assombram o tema. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=b6RDgB8GVW8.
Carlos A F de Abreu
Lattes | ORCID
ABREU, Carlos A F de. Política Criminal. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. 3. ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2022. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/politica-criminal/110. ISBN 978-65-87298-14-6.