Encarceramento em massa

Encarceramento em massa

Definição

Taxa de encarceramento, histórica e comparativamente sem precedentes, altamente concentrada em comunidade ou grupos sociais específicos.

Aspectos distintivos

No intervalo das quatro últimas décadas, a população prisional dos Estados Unidos sofreu um aumento de 500%. Diante desse quadro, o interesse acadêmico crítico à experiência prisional se concentrou na análise das causas e dos efeitos de uma população penal dessa escala. Dois fatores foram identificados como característicos do aprisionamento em massa: primeiro, um tamanho da população prisional e uma taxa de aprisionamento notavelmente superiores ao padrão histórico e comparativo para sociedades desse tipo; segundo, o aprisionamento sistemático concentrado em grupos inteiros da população.

As estatísticas da população prisional estadunidense logo evidenciaram os dois fatores: números crescentes de aprisionamento (Figura 1), com maior concentração em populações específicas (afro-americanos e latinos). Estudos subsequentes comprovaram o mesmo fenômeno em outros países, com variações na população encarcerada (indígenas, na Austrália, por exemplo).

Figura 1: Número de prisioneiros em penitenciárias federais e estaduais, nos Estados Unidos (1980-2017).

Fonte: Bureau of Justice Statistics, U.S. Department of Justice.

A Figura 1, todavia, não traduz as cifras reais do volume de pessoas submetidas à privação de liberdade. Isso porque, no contexto estadunidense, o termo aprisionamento é limitado aos condenados cumprindo pena em penitenciárias federais e estaduais pelo período de mais de um ano. Condenados com penas de curto prazo e presos alocados em cadeias locais (presos preventivos, em trânsito ou aguardando procedimentos) não são contabilizados. A exclusão em especial das populações locais de cadeias (jails) subestima o nível do encarceramento e foi por esse motivo que muitos passaram a avaliar o fenômeno como “encarceramento em massa”.

Figura 2: Número de prisioneiros em penitenciárias federais e estaduais (colunas pretas) e de prisioneiros encarcerados incluindo cadeias locais (colunas cinzas), nos Estados Unidos (1980-2017).

Fonte: Bureau of Justice Statistics.

E mesmo assim, essa ampliação não dá conta da realidade: as estatísticas se baseiam em relatórios instantâneos, obtidos em um específico dia nas instituições e não no trânsito de presos no período de um ano.

Além da contagem per capita, é importante avaliar a proporção da população encarcerada comparada à população total de um país. A Figura 3 ilustra a taxa de encarceramento estadunidense: a linha pontilhada indica o número de pessoas encarceradas por 100.000 residentes de todas as idades nos EUA; a linha contínua indica o número de pessoas encarceradas por 100.000 residentes nos EUA, com 18 anos de idade ou mais. Para um comparativo (e ainda que em tendência de redução desde 2008, quando atingia 760/100.000), em 2016, a taxa estadunidense de 670 ainda era muito superior a de outros países com grandes populações encarceradas, como a Rússia (448) e o Brasil (352).

Figura 3: Taxas de encarceramento nos Estados Unidos (1980-2016).

Fonte: Bureau of Justice Statistics.

O encarceramento em massa é resultado de escolhas sociopolíticas. Alguns fatores são comuns aos países que enfrentam essa expansão do sistema penal: o medo endêmico do crime, muito fomentado por apelos midiáticos apaixonados por políticas mais duras contra a criminalidade; a assunção do crime na pauta eleitoral e sua instrumentalização para o exercício de governo; a necessidade de respostas políticas para garantir a segurança pública; a política de guerra às drogas. No caso do Brasil, isso fica evidente com o aumento das penas acompanhado por uma maior restrição dos benefícios penais (por exemplo: Lei dos Crimes Hediondos), que levam condenados a iniciar obrigatoriamente o cumprimento de pena em regime fechado e a estender seu tempo para a progressão de regime, e a criminalização de determinadas condutas e de algumas populações (por exemplo: Lei de Drogas), o que aumentou a taxa de admissões (input) às prisões, sem um correspondente fluxo de liberação (output) para alívio do sistema. Além disso, o abuso na utilização da prisão preventiva (estima-se que a população prisional brasileira provisória beira 40% da população encarcerada) contribui para o inchaço da população aprisionada. Esses fatores não devem ser interpretados como uma consequência indesejada e imprevisível de reformas legislativas voltadas a atender a questão da segurança pública; como argumenta Alessandro de Giorgi, essa perspectiva despolitiza e des-historiciza a atual crise penal.

As consequências colaterais do encarceramento em massa introduzem uma miríade de restrições: acesso restrito à moradia, que leva os ex-apenados ao desabrigo; acesso restrito ao mercado de trabalho, manifesto nos efeitos estigmatizantes do histórico criminal e nas interdições legais para o trabalho em vários serviços; acesso restrito à assistência social; restrição de voto, o que gera uma influência racial no resultado eleitoral. Todas essas restrições contribuem para a insegurança econômica, a precarização do trabalho, a ruptura das relações familiares, o colapso comunitário, o desengajamento cívico, a violência interpessoal e a perpetuação das desvantagens daqueles capturados na rede do sistema penal com a transmissão intergeracional da desigualdade social.

Michelle Alexander identifica o intenso encarceramento em massa de pessoas negras como parte de um histórico e estratégico processo de segregação e dominação racial que perpassa a escravidão e as leis segregacionistas (Jim Crow), nos Estados Unidos. Loïc Wacquant prefere o termo hiperencarceramento para salientar a seletividade classista, racista e local (gueto), porque a expressão “em massa” sugere uma ampliação distribuída na sociedade, como comunicação de massa, cultura de massa etc.

Análise

A análise quantitativa da população prisional brasileira confirma uma firme tendência de crescimento, histórica e comparativamente sem precedentes, independente do viés ideológico do governo em exercício (Figura 4), o que levou o país a figurar em terceiro lugar dentre as nações com maiores taxas de encarceramento (que passou de 95 a 352, no período de duas décadas, 1995-2016). E, embora um recorte racial ou étnico não fique bem definido no Brasil como em outros países, é inquestionável que o país segue a tendência de abrigar em suas prisões quase exclusivamente pessoas mais pobres, menos instruídas, mais desempregadas, vindas geralmente das comunidades mais desfavorecidas, vulneráveis e marginalizadas da sociedade.

Figura 4: Pessoas privadas de liberdade, no Brasil (1990-2019).

Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, DEPEN/MJ (1990-2017); Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, CNJ (17/07/2019). Não há dados oficiais para alguns anos.

Todavia, é importante refletir sobre a indagação de David Brown com relação a quanto o conceito de encarceramento em massa é útil, crítico e apropriado para outros contextos, como o brasileiro. De qualquer modo, o diagnóstico do encarceramento em massa é importante como alerta de uma crise penal com graves consequências. A partir dele, muitas propostas têm sido elaboradas. No âmbito das políticas públicas, as ações variam da construção de novas unidades prisionais para aliviar a superlotação, passando pela restrição de ingresso de presos com as audiências de custódia e pelo estabelecimento de um teto limite correspondente à capacidade de engenharia do sistema, até, num contexto de austeridade, a defesa da privatização prisional e dos serviços supervisionais, incluindo também propostas de transferência aos próprios presos de parte dos custos da detenção. No âmbito acadêmico, as proposições são mais radicais e denunciam os efeitos criminogênicos do sistema penal e o seu esgotamento para a promoção da justiça social. Nesse ponto, é válido nos atentarmos ao questionamento de Alessandro de Giorgi sobre se podemos esperar que as mesmas elites do poder que erigiram o Estado penal estão dispostas e aptas a desmantelá-lo; e, se de fato as críticas ao fenômeno conduzirem a um novo período de moderação penal, quais serão as prováveis características do paradigma de controle penal que surgirão. A redução quantitativa não parece suficiente, a não ser que ela seja acompanhada de estratégias que resolvam as causas que tornam determinadas comunidades e grupos sociais mais vulneráveis ao processo de criminalização, sob risco de a mera redução populacional prisional esconder um processo de transencarceramento ou de expansão da supervisão correcional.

Figura 5: População correcional nos Estados Unidos (1980-2017)

Fonte: Bureau of Justice Statistics (1980-2016); Prison Policy Initiative (2017).

A Figura 5 apresenta a população correcional total nos Estados Unidos. Nela fica evidente uma tendência de redução da população aprisionada nas instalações federais e estaduais (colunas pretas), enquanto o total de pessoas encarceradas parece não sofrer o mesmo decréscimo (colunas cinzas), sugerindo uma absorção da população aprisionada nas cadeias locais. Além disso, o volume de apenados em supervisão (colunas brancas), por probation e parole, evidencia a expansão penal por meio da ampliação da rede e do afinamento da malha supervisional.

Retome-se o alerta de Michel Foucault: a reforma da prisão é mais ou menos contemporânea da própria prisão. O que ele quis expressar com isso foi que a prisão, tal como o controle penal, talvez seja uma instituição irreformável. Ela sempre esteve engajada numa série de mecanismos de acompanhamento que aparentam pretender corrigi-la, mas que fazem parte dos seus próprios programa e funcionamento. O fim do encarceramento em massa talvez não seja tão revolucionário quanto se espera. O porvir pode ser uma mera compatibilização da punição com os arranjos político-econômicos e as sensibilidades culturais hegemônicas, consolidando ainda mais o domínio do controle penal sobre a estrutura da sociedade.

Referências bibliográficas

ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.
BROWN, David. “Encarceramento em massa”, In CARLEN, Pat; FRANÇA, Leandro Ayres (orgs.). Criminologias alternativas. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2017.
DE GIORGI, Alessandro. Cinco teses sobre o encarceramento em massa. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2017.
GARLAND, David. “The meaning of mass imprisonment”, In GARLAND, David (ed.). Mass imprisonment: social causes and consequences. London: Sage, 2001.
WACQUANT, Loïc. “O estigma racial na construção do Estado punitivo americano”, Configurações, 5/6, 2009.

Referências artísticas

O Prisioneiro da Grade de Ferro (Autorretratos) (Paulo Sacramento, 2003)
Documentário
Utilizando as técnicas aprendidas em um curso de filmagem ministrado dentro do presídio, os detentos encarcerados na antiga Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru) documentam seu cotidiano, registrando as condições precárias nas quais sobrevivem.

Proliferation (Paul Rucker, 2009)
Vídeo
O vídeo mostra um mapeamento animado do sistema prisional estadunidense, evidenciando a sua expansão ao longo do tempo. Com esse projeto multimídia, o compositor, músico e artista visual Paul Rucker desconstrói a abstração das cifras prisionais em uma experiência significativa e emocional.

A 13ª Emenda (Ava DuVernay, 2016)
Documentário
O filme explora a intersecção entre raça, justiça e encarceramento em massa, nos Estados Unidos, identificando o intenso aprisionamento de pessoas negras como parte de um histórico processo de segregação racial que perpassa a escravidão e as leis segregacionistas (Jim Crow).

Leandro Ayres França
Lattes | ORCID


FRANÇA, Leandro Ayres. Encarceramento em massa. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2020. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/encarceramento-em-massa/45. ISBN 978-85-92712-50-1.

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