Democracia

Democracia

Definição

Forma política na qual a organização social é definida pelo exercício do controle popular; forma de governo em que é expressada a organização e o funcionamento do poder estatal pela ideia de soberania popular.  

Aspectos distintivos

Composta pelos vocábulos de origem grega demos que significa povo e kracia que remete autoridade ou governo, a palavra democracia pode ser entendida por “governo do povo”. Sua essência reside na expressão do povo autogovernar-se de forma autônoma e direta. O marco para a instituição desses valores é o pensamento democrático situado em Atenas, na Grécia entre o século V e VI antes de Cristo, onde, cotidianamente, em assembleias do povo, os cidadãos de pleno direito protagonizavam discussões e, em votações, chegavam a decisões sobre questões essenciais a vida da cidade e sobre os interesses coletivos de seus habitantes. Essa forma de participação popular no domínio político recebeu o nome de democracia direta. Outro aspecto relevante é que apesar do agir do Estado à época ser para muitos e ter a participação desses muitos, alguns tantos não eram contemplados entre as pessoas atuantes, restando excluídos os estrangeiros, os escravos e as mulheres, os quais não eram “aptos” ao exercício dos direitos da cidadania, sendo excluídos do processo de participação na vida política, não eram cidadãos.

Na modernidade, a prática da democracia direta é impossibilitada principalmente pela amplitude territorial, a elevada cifra populacional das sociedades atuais, e, além disso, ao contrário das condições vividas pelo cidadão livre ateniense, pelas necessidades de vida do homem moderno serem voltadas para o provimento das necessidades básicas de sua existência. A saída possível para as democracias modernas, como menciona Bonavides, foi o governo democrático de bases representativas. A vontade geral traduzida pela soberania popular, fonte de poder legítimo do povo; o sufrágio universal; a exigência da observância constitucional; a igualdade de todos perante a lei; a representação como base das instituições políticas; a limitação de prerrogativas dos governantes e o Estado de Direito, com a primazia e a garantia do cumprimento do ordenamento jurídico vigente, são a base da denominada democracia indireta ou representativa – que é entendida como uma segunda via democrática, uma forma inferior, como diz Ernst-Wolfgang Böckenförde, e por isso, deficitária do real sentido e espírito democrático marcado pela forma direta - uma alternativa viável dadas as circunstâncias. A nova perspectiva é interpretada de forma subsidiária em razão da ocorrência de transferência do poder de decisão comum para um grupo menor de pessoas; nessas comunidades a atuação do Estado é traduzida pela outorga do povo a representantes eleitos. A partir de então, inscritos em órgãos que atuam por si mesmos em representação do povo e como o povo, com atuação organizada em uma unidade política de ação, é encontrado o poder do Estado.

Deste modo, como instrumento ao exercício do poder democrático do Estado é identificada a legitimação conferido pelo povo. Rosseau, em Do Contrato Social, aponta a importância da subsistência de um convênio anterior à eleição entre os particulares, uma espécie de associação daqueles que votam, ato que constitui a sociedade, e que em não existindo obrigaria a unanimidade – sem essa estaríamos diante de decisões que não vinculariam a todos, apenas aos votantes vitoriosos, isto é, a união de cada um a todos orienta a obediência a si mesmos. Para além da pessoa particular, o “convênio”, ou melhor, o pacto ou contrato social, produz um corpo unitário moral e coletivo, uma pessoa pública formada pela união de todos os particulares que a denominam em alguns momentos de Estado, em outros de soberana ou autoridade. Por fim, tomado o termo com todo o rigor, o filósofo conclui, acompanhado por autores posteriores a sua passagem, que jamais houve, ou haverá, dadas as condições atuais das democracias representativas, verdadeira democracia - sendo essa entendida pelo filósofo como a guarida da dominação do povo sobre si mesmo com fidelidade aos valores de igualdade e liberdade.

Análise

Transcender. Sem correr o risco de negligenciar as concepções expostas até o momento sobre o termo, adiante das definições e construções históricas das quais a democracia é alvo ou está empenhada, para aqueles que a viveram ou sonham em vivê-la, igualmente ou por consequência desses aspectos, trata-se de um sentimento, um espírito. Apesar de toda a complexidade que envolvem as perspectivas do processo democrático e, parafraseando Winston Churchill, sendo a democracia a pior forma de governo com exceção de todas as demais formas já experimentadas, cada vez com mais frequência encontram-se estudiosos que se dedicam a demonstrar e evidenciar a recessão, o declínio democrático mundial percebido nos últimos anos, fenômeno experimentado, inclusive, por democracias consolidadas como a dos Estados Unidos. Nesse sentido, com base nas últimas décadas podem ser destacados também países como a Venezuela, Geórgia, Hungria, Nicarágua, Peru, Filipinas, Polônia, Rússia, Turquia, Reino Unido, Brasil, dentre outros.  O livro Como as Democracias Morrem, de autoria de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, retrata o fenômeno do declínio no quadro de sucessivos aumentos de representações democráticas, baseado em levantamentos do Polity Project,  projeto de monitoramento constante das mudanças dos regimes de 167 países - recorte realizado com base no tamanho da população dos países, contempla Estados com uma população total de 500.000 ou mais pessoas -, apontam que havia 42 democracias, em 1985, onde moravam 20% da população mundial, saltando o número, em 2015, para 103, com 56% da população mundial. Como foi visto, hoje o avanço é ponderado como algo temporário, em razão do fim do processo contínuo de ampliação de democracias mundiais.

Diferentemente do que antes era conhecido como indício para a morte de democracias, como golpes militares, ditadura ostensiva e outras formas violentas de tomada do poder, agora, de acordo com Levitsky e Ziblatt, a morte ocorre por outros meios, em especial, pelos próprios governos eleitos - o retrocesso começa nas urnas.

Por este ângulo, retomando Rosseau, a vontade geral seria sempre reta, com tendência para a utilidade pública, mas a afirmativa não significa que as deliberações do povo tenham sempre essa direção, uma vez que, apesar desse nunca ser corrompido, com frequência é enganado, sendo assim, ainda que queira o próprio bem, nem sempre o vê. No declínio da democracia encontramos a demagogia e, em decorrência, torna-se possível a visualização de um governo de multidões rudes, incultas e tiranas. Em proveito, os autocratas eleitos mantêm uma imagem democrática, um discurso, enquanto corroem a essência, o sentimento e o espírito democrático. Indaga-se: subsiste democracia e, com isso, um Estado Democrático de Direito, em uma nação em que, por meio de seus representantes, outorgados pelo povo, sistematicamente, são proferidos discursos de ódio contra a imprensa, contra adversários políticos e contra aqueles que por não compactuarem com a ideologia do governo e, por isso, não são enquadrados no grupo seleto de “cidadãos de bem”? Ou ainda, é viável a presença dos preceitos democráticos em um governo que defende poucos, que exclui e rechaça aqueles que julga serem a “minoria” e que simbolizam os grupos, tradicionalmente, vulneráveis, quais sejam: os negros, os pobres, as mulheres, os homossexuais? Acreditem, as respostas são facilmente extraídas desta simplória explanação .    

Referências bibliográficas

BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Estado de direito e democracia. Curitiba: Instituto Atuação, 2017.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2018.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Porto Alegre : L&PM, 2007.

Referências artísticas

[Sem título] (Laerte)
Charge
Inspirada em mensagem transmitida reiteradamente pelo atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante sua campanha eleitoral, faz menção à legitimação ao uso da violência policial contra quem não se encaixar no padrão definido como “cidadão de bem” – moldes ainda incertos para configuração de quem faz jus ao título.


[Sem título] (Autor desconhecido)
Fotografia
Por muitos interpretada como a última saída para a crise política, social e econômica vivida pelo país, com frequência nos últimos tempos, têm sido vistos clamores de manifestantes pela implantação da intervenção militar. O Brasil viveu 20 anos de governo militar, com restrição do direito ao voto, a participação popular e repressão com violência a movimentos de oposição. Hoje, o pedido realizado envolve a intervenção militar, figura distinta da ditatura - o que, seguramente, não é de conhecimento dos solicitantes -, mas que apesar de outra roupagem e da possibilidade estar prevista constitucionalmente usurpa direitos garantidos na Lei Maior.


Pendente de Voto (Roger Bernat, 2014)
Peça teatral
Espetáculo interativo que transforma o público em protagonista e se destaca pela criação de um sistema que compreende a participação da plateia como ponto chave na representação simbólica de um parlamento. Aos espectadores cabe decidir sobre uma série de questões. As respostas da plateia fazem o espetáculo evoluir, de modo a proporcionar aos participantes a prática da democracia representativa. Em São Paulo, a produção teatral causou alvoroço, com protestos, pedidos de participantes para que a plateia abandonasse a peça, protestos e pedidos de que quem não votasse com a maioria fosse banido da sala em que ocorreu o espetáculo.

Karolline da Silva Silveira
Lattes | ORCID


SILVEIRA, Karolline da Silva. Democracia. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2020. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/democracia/37. ISBN 978-85-92712-50-1.