Definição
Responsabilização criminal da gestante – quando por ela consentido – e de quem provoca ato intencional de interrupção da gestação não permitido por lei.
Aspectos distintivos
Considerando crime contra a vida, por pressupor a potencialidade de vida extrauterina, os arts. 124 a 127 do Código Penal (CP) preveem a punição da gestante – quando consente – e de quem realiza o ato intencional de interrupção da gestação, salvo duas exceções, previstas no art. 128 do CP: gravidez resultante de estupro e risco iminente de morte para a gestante.
Buscando atender aos ditames católicos de condenação por atos considerados imorais, o Código Criminal do Império, datado em 1830, criminalizou o ato abortivo como uma espécie de "infanticídio". Em tempos republicanos, os Códigos Penais de 1890 e 1940 mantiveram a criminalização da conduta intencional de interromper a gravidez.
A Constituição da República Federativa do Brasil (1988) garante a inviolabilidade do direito à vida de todos os brasileiros, mas é no art. 2º do Código Civil e no art. 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente que se encontram as disposições que protegem alguns direitos a partir da concepção.
Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, decidiu que o procedimento abortivo de feto anencefálico, realizado por médico e em hospitais credenciados pelo Estado, não configurava o crime de aborto, uma vez que, conforme estudos de entidades médicas e científicas, a pré-condição do feto o torna insuficiente para a vida extrauterina.
Quatro anos mais tarde, no julgamento do Habeas Corpus nº 124.306, o mesmo Tribunal, interpretando os artigos do CP conforme a Constituição, decidiu excluir a ilicitude da interrupção voluntária da gravidez de até 12 semanas. Da mesma forma, a descriminalização do aborto para gestações de até 12 semanas está sendo discutida na ADPF nº 442, de propositura do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), centrando a discussão em procedimentos clandestinos que atendem a essa demanda e suas graves consequências.
Análise
Em uma perspectiva criminológica feminista, pode-se afirmar que a criminalização do aborto, nos seus diferentes momentos, atendeu aos reclames morais de uma sociedade fundada e fundamentada sobre bases patriarcais e de religiosidade conservadora, sem qualquer respeito ou relevo à mulher. Essa condição se manteve essencialmente inalterada por toda a história do Brasil, como país independente.
Os debates iniciados pelos movimentos feministas – mais dinamicamente a partir da década de 1970 – colocaram em pauta a liberdade e indisponibilidade dos corpos femininos, o direito à livre escolha e o acesso a métodos contraceptivos. Desse modo, tais discussões se mantêm em diversas parte do mundo até os dias de hoje, seja pelo recrudescimento do tratamento dispensado à mulher em diversas culturas ou pela reversão do entendimento da Suprema Corte estadunidense sobre a liberdade da mulher em escolher praticar o aborto.
Ao obrigar a mulher a levar adiante uma gestação indesejada, o Estado retira-lhe a autonomia sobre seus direitos sexuais e reprodutivos, a impedindo de exercer plenamente sua cidadania – que também consiste no exercício pleno e livre de direitos, não se restringindo somente ao cumprimento de obrigações. Além disso, em qualquer análise coerente, considera-se a ineficiência e incapacidade do país em atender – mesmo que minimamente – às necessidades básicas de sua população, seja através da educação e prevenção, seja através do atendimento médico e ainda, através do suporte econômico.
Na discussão do aborto é importante levar em consideração a inadequação da lei penal como resposta a esse fato social, uma vez que não inibe a ocorrência do fato, como pretende fazê-lo, e impede que a parcela da população com menor poder aquisitivo tenha possibilidade de realizá-lo de forma segura, fato que impacta a mulher, sua família e a sociedade como um todo. A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada pela Anis (Instituto de Bioética) e Universidade de Brasília (UnB), em 2016, afirmou que se todas as mulheres que recorreram ao aborto em algum momento de suas vidas estivessem presas, teríamos, aproximadamente, 4 milhões de mulheres encarceradas; outro dado levantado na pesquisa é de que 1 em cada 5 mulheres de até 40 anos recorre ao mercado clandestino de medicação abortiva, o que totaliza um número anual de aproximadamente 500 mil abortos realizados através desse método.
Outro aspecto a ser considerado foi apresentado pela ONG Criola, que se manifestou como amicus curiae no julgamento da ADPF nº 442. Na ocasião, foram apresentados dados que consubstanciam a afirmação de que ser pobre não é característica definidora das mulheres que realizam o aborto, mas é característica dominante daquelas que são processadas e presas pelo sistema penal.
Corroborando com as afirmações da ONG Criola, o Relatório Anual e Socioeconômico da Mulher, produzido pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres no ano de 2017/2018, apontou que 62,8% das mortes maternas em decorrência de práticas abortivas foram de mulheres negras. Ao cotejarmos as constatações da ONG e os dados do Relatório, percebe-se que o punitivismo penal é seletivo e por meio de suas ações, fomenta discriminações sociais e atos de racismo institucional.
No âmbito do judiciário, a discussão parece ignorar as implicações individuais e sociais que giram em torno do assunto, pois centra-se na definição do momento em que inicia uma nova vida - se no momento da concepção ou após 12 semanas de gestação. Assim, mantém-se a discussão sobre os direitos das mulheres em segundo plano.
Louve-se, no entanto, algumas manifestações de ministros da Suprema Corte, que iniciam movimentos no sentido de reconhecer os direitos naturais sonegados às mulheres. O então Ministro Marco Aurélio, no julgamento da ADPF nº 54, afastou o dogma religioso da discussão ao lembrar que o Estado brasileiro é laico e menciona ipsis litteris que "aos setores da sociedade que reputam reprovável moralmente condutas das mulheres, não podem conduzir à incriminação dessas eventuais condutas, pois ações de cunho meramente imorais não merecem a atenção do Direito Penal". O Ministro Luis Barroso, em 2019, na Brazil Conference At Harvard & MIT, afirmou que a criminalização do aborto gera impacto negativo e causa consequências desproporcionais na vida de mulheres mais pobres e acrescenta que, "porque se só a mulher engravida, para ela ser verdadeiramente igual ao homem, ela tem que ter o direito de querer ou não querer engravidar. E, se homens engravidassem, esse problema já estaria resolvido há muito tempo."
Referências bibliográficas
ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA. Aborto: por que precisamos descriminalizar? Argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal na Audiência Pública da ADPF 442. Brasília: LetrasLivres, 2019.
DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, supl. 1, p. 959-966, jun. 2010.
FONSECA, Jamile Guerra. Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos. Curitiba: Appris, 2018.
PRADO, Danda. O que é aborto. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Brasiliense, 2007.
THOMSON, Judith Jarvis. Uma defesa do aborto, Revista Brasileira de Ciência Política, n. 7, p. 145-164, 2012.
Referências artísticas
4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (Cristian Mungiu, 2007)
Filme
Filme romeno que retrata a gravidez indesejada de uma universitária, em 1987. A jovem, com o apoio de uma amiga, se submete a dura realidade da pressão psicológica pela decisão de fazer o aborto e as suas dolorosas consequências. O drama foi escolhido por demonstrar uma sociedade com as liberdades cerceadas, retratado em um país comunista com uma política de natalidade agressiva.
Rocking Horse (Melanie Martinez, 2014)
Música
A artista americana narra o sofrimento de uma mulher com o aborto espontâneo, se culpando pelo ocorrido. É possível refletir sobre o sofrimento psicológico que o aborto pode trazer, podendo desestabilizar as relações familiares.
Crimes de Família (Sebástian Schindel, 2020)
Filme
Patrocinado pela ONU, o filme retrata as diversas formas de violência por injustiça, dor e sofrimento em que uma mulher pode sofrer na sociedade. Na história de uma família tradicional, branca, de classe média, destaca-se a relação de maternidade em vários aspectos: como cada mulher age diante dessa tarefa e do meio que vive.
Katheline Silveira
Lattes | ORCID
SILVEIRA, Katheline. Criminalização do aborto. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); ABREU, Carlos A F de; RIBAS, Eduarda Rodrigues (orgs.). Dicionário Criminológico. 4. ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2023. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/criminalizacao-do-aborto/127. ISBN 978-65-87298-15-3.