Colaboração premiada

Colaboração premiada

Definição

A "colaboração premiada" é um instrumento jurídico que garante a investigados na fase policial e acusados no processo penal, após cumpridos requisitos previstos em lei, benefícios penais em troca de cooperação com as instituições judiciais.

Aspectos distintivos

No sistema de justiça criminal brasileiro, investigados e réus que se proponham a confessar sua participação em um delito e a contribuir para a elucidação das circunstâncias de determinado fato criminoso e/ou identificação de outros agentes envolvidos estão habilitados a negociar determinadas premiações. Com isso, a colaboração premiada se traduz na cooperação de determinado agente com as instituições judiciais, encontrando no termo “delação premiada” um sinônimo. Na legislação brasileira, esse instituto está previsto desde a década de noventa em múltiplas leis: Lei nº 8.072/1990 (Crimes Hediondos), Lei nº 7.942/1986 e as alterações da Lei nº 9.080/1995 (Crimes contra o Sistema Financeiro), Lei nº 9.613/1998 (Lavagem de Dinheiro), Código Penal e as alterações previstas pela Lei nº 9.269/1996 (Extorsão Mediante Sequestro), Lei nº 9.807/1999 (Proteção à Vítima e Testemunha) e Lei nº 11.343/2006 (Entorpecentes). Mais recentemente, também passaram a constar na Lei nº 12.529/2011 (Lei Antitruste) e Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção). Apesar de um cenário normativo intenso, essas legislações continham em seu conteúdo apenas a efetivação de benefícios aos réus, inexistindo quaisquer formas pelas quais as colaborações deveriam ocorrer. Ou seja, não foram dispostas as etapas necessárias que as instituições da justiça criminal deveriam percorrer para firmar um acordo de colaboração premiada. Assim, cada juiz ficava livre aplicar procedimentos distintos. Esse panorama se modificou com a promulgação da Lei nº 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas), a qual introduziu diversas alterações.

Segundo o art. 4º dessa lei, o juiz poderá conceder três benefícios: a) perdão judicial; b) redução de até 2/3 da pena privativa de liberdade; c) substituição da privação de liberdade por restritiva de direitos. Também determina que os acordos deverão ser efetivos e voluntários. Entre os resultados, ao menos um desses deve constar para a eficácia da colaboração premiada: a) a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; b) a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; c) a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; d) a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; e) a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. Quando esses resultados estão presentes, o juiz ainda levará em conta para a concessão dos benefícios a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade, a repercussão social e a eficácia da colaboração.

Entre juristas, diversas discussões sobre a natureza desse instituto foram travadas. Uma delas está atrelada à capacidade do acordo firmado ser tomado como um negócio jurídico celebrado entre partes. De um lado, investigado/acusado e, de outro, instituições judiciais como Ministério Público e Polícia.  Em termos gerais, os acordos celebrados estariam prevendo direitos e obrigações e, por isso, direitos subjetivos (aos prêmios, por exemplo) surgiriam. Nesse sentido, o final nos anos noventa pode ser considerado um marco para a colaboração premiada no Brasil. Um acordo realizado na operação policial-judiciária conhecida como "Caso Banestado" (1996-2004) teria servido como modelo para futuras negociações.

Diversas foram as legislações produzidas no país até a segunda década dos anos 2000. Porém, mesmo com esses incrementos normativos, a colaboração premiada somente popularizou-se quando membros do Ministério Público e da Polícia Federal vinculados à Operação Lava Jato consolidaram diversos acordos com empresários, políticos e doleiros. Assim, contando com uma relação intensa com os meios de comunicação, tornaram públicas algumas engrenagens do mundo da política e do sistema financeiro. Com o crescimento do número de colaborações premiadas e suas repercussões, algumas questões foram levantadas no debate público. Uma das discussões envolveu, por exemplo, a possibilidade de delação premiada enquanto investigados e réus eram mantidos encarcerados por meio de prisões preventivas. De um lado, onde podem ser localizados advogados criminalistas e acadêmicos, argumentou-se que a colaboração combinada com a prisão poderia ofuscar o requisito da voluntariedade e ferir os direitos do colaborador. Nesse caso, investigados/réus poderiam fornecer informações somente para ter sua prisão revogada. De outro, agentes do Ministério Público Federal argumentaram (em artigos jornalísticos de fácil localização na internet) que as prisões preventivas decretadas eram legais. Nesse sentido, argumentam que os Tribunais Superiores as mantiveram por meio da análise de recursos, assim como que em muitas vezes a iniciativa foi da própria defesa de propor a colaboração. Outros debates se voltaram para os usos dos conteúdos das colaborações pelos meios de comunicação (na forma de escândalos) e por agentes políticos (para deslegitimar adversários). Em ambos os casos, a reputação dos agentes envolvidos poderia ser colocada em suspeição antes mesmo da comprovação das alegações do colaborador. Ainda no âmbito da Operação Lava Jato, pesquisas demonstram que algumas das limitações impostas pela Lei das Organizações Criminosas foram desrespeitadas, sendo oferecidos benefícios não previstos em lei. Como exemplo, aponta-se os "regimes diferenciados de execução de penas", nos quais cláusulas dos acordos chegaram a prever critérios diferentes daqueles existentes em leis para o cumprimento do tempo da pena de prisão e também para a progressão de regimes.

Na perspectiva de uma sociologia da violência, a colaboração premiada se insere em uma tradição inquisitorial ao estar atrelada a procedimentos sigilosos e burocratizados. Dessa forma, o instituto tenderia a afastar-se do procedimento judicial e, consequentemente, do zelo pelo direito de defesa. A partir disso, no cenário da Operação Lava Jato, os padrões de atuação do sistema de justiça criminal brasileiro, historicamente destinado a pessoas inseridas em marcadores bastante definidos (principalmente sociais e de cor), teriam se expandido para abarcar as elites políticas e econômicas, em suas devidas proporções. Aliás, por ser aplicada e validada por agentes do campo jurídico brasileiro (procuradores da República, policiais federais e juízes federais ou ministros dos Tribunais Superiores) a colaboração premiada tenderia a reproduzir e perpetuar o sistema de ensino jurídico e, em consequência, as práticas inerentes a esse universo. Desse modo, pela legitimidade que a colaboração premiada agrega aos agentes e às instituições do mundo jurídico, esse instituto vem sendo disputado como recurso sociopolítico.

A partir de 2016, a ADI nº 5.508 passou a tramitar no Supremo Tribunal Federal. Essa ação foi proposta pelo Ministério Público a fim de questionar a constitucionalidade de um trecho da Lei das Organizações Criminosas (em seu art. 4, §6º), o qual estabelece a atribuição dos delegados de polícia para firmarem acordos. Desde uma análise mais específica, a partir das ciências sociais, demonstrou-se que não se tratava apenas de uma disputa por atribuições, mas antes como uma estratégia do Ministério Público para adquirir recursos práticos que garantissem seu protagonismo. Além disso, apesar da cooperação com outras instituições no âmbito de operações de combate à corrupção por meio das forças-tarefas, essa ação também preservaria o próprio monopólio legítimo desses recursos. Assim sendo, a consolidação da colaboração premiada como um instrumento próprio propiciaria, aos promotores e procuradores, a definição de sua própria política criminal ao aumentar seus poderes no modelo de investigação e persecução que hoje vigora no país. Em junho de 2018, o STF julgou improcedente a ação. Essas lutas pela definição de quem poderá propor um acordo de colaboração premiada demonstram a importância que esse instrumento passou a adquirir no cenário nacional.

Análise

Ao mesmo tempo que muitas abordagens sobre a colaboração premiada surgem em um tom de crítica ao instituto e aos seus usos pelo sistema de justiça criminal, em especial no âmbito da Operação Lava Jato, outras perspectivas estão engajadas em uma proposta mais analítica. Primeiro, tem-se aquelas inseridas no campo dos estudos jurídicos, no qual a colaboração premiada vincula-se ao debate sobre a importação e inserção de uma justiça negociada no Brasil, os limites da colaboração premiada como meio de obtenção de prova, o direito à não autoincriminação, entre outros. Em seguida, no campo da sociologia da violência, esse instituto se atrela às discussões sobre a verdade no processo penal e seus traços inquisitoriais. Ainda, com uma entrada mais recente, a colaboração premiada também pode ser vista desde o ponto de vista das lutas que se desenrolam no campo jurídico brasileiro entre agentes e instituições. Por fim, como parte importante do processo de compreensão das origens desse instituto, as análises históricas também se fazem presente. Assim, considera-se que a temática vem sendo abordada de maneira ampla no campo científico e que seus desdobramentos futuros – como alguns recursos pendentes de julgamento no Supremo Tribunal Federal, as alterações realizadas pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) e os padrões que se apresentam na prática diária desse instituto – poderão suscitar novas problematizações.

Referências bibliográficas

CASTELUCI, Eduardo. O Ministério Público nas trincheiras da colaboração premiada: o caso da ADI 5.508. Plural 26(2), 2019, p. 129-151.
FARIA, Vera Ribeiro de Almeida dos Santos. "Trocando pneu com o carro andando!": uma pesquisa empírica sobre as representações acerca do instituto da colaboração premiada dentre os atores do sistema de justiça do Estado do Rio de Janeiro. Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.
LIMA, Roberto Kant de; MOUZINHO, Glaucia Maria Pontes. Produção e reprodução da tradição inquisitorial no Brasil: entre delações e confissões premiadas. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social 9(3), set.-dez. 2016, p. 505-529.
SONTAG, Ricardo. Para uma história da delação premida no Brasil. Revista Brasileira de Direito Processual Penal 5(1), 2019, p. 441-468.
VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração premiada e negociação na justiça criminal brasileira: acordos para aplicação de sanção penal consentida pelo réu no processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais 166, 2000, p. 241-271.

Referências artísticas

The Blacklist (Jon Bokenkamp, 2013-)
Série
Seriado norte-americano que estreou no dia 23 de setembro de 2013 na rede NBC. Sua relação com a colaboração premiada pode ser estabelecida com a tradução de seu nome para o português: a lista negra. Seu roteiro gira em torno da história de Raymond "Red" Reddington, um ex-oficial da marinha dos Estados Unidos, o qual, em troca de prêmios, colabora com uma agente recém-chegada no Federal Bureau Investigation (FBI) fornecendo-lhe nomes que acumulou durante sua trajetória no "mundo do crime". Com isso, busca imunidade pelos crimes que teria cometido.

Cartoon sem título (Laerte Coutinho, s.d.)


Lucas e Silva Batista Pilau
LattesORCID


PILAU, Lucas e Silva Batista. Colaboração premiada. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. 2.ed. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2021. Disponível em: https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/colaboracao-premiada/69. ISBN 978-65-87298-10-8.